sexta-feira, 20 de novembro de 2020

MEUS ANTEPASSADOS E O RACISMO ESTRUTURAL

Desde que me conheço por gente escuto histórias sobre meus antepassados. Algumas são relatos lindos, de superação e sobrevivência e me enchem de orgulho até hoje. Entretanto há dois episódios que sempre me foram contados em tom de anedota e demorei muito tempo para perceber a violência, racismo e exibição de poder sobre os mais fracos que isso representava. Contam que uma mulher ascendente (não sei se tataravó ou tetravó) de minha família teve relações com um dos escravos da fazenda. Por ter tido o “azar” de ficar grávida, foi expulsa da família e passou a morar com o escravo na senzala. Poderia ser uma história de amor e abnegação, mas hoje percebo não só a discriminação e até mesmo o abuso que este escravo sofreu. Sabe-se lá se ele realmente estava interessado em ter sexo com minha parente ou se tinha outra família, ou alguma mulher que o amasse e acabou transando com a senhorinha porque ela se sentia dona. A palavra “azar” toma um peso cada vez maior quando penso que isso era comum, dos senhores de escravo os usarem como objetos sexuais, sem respeitar seus desejos, suas vontades, sua humanidade. Se não tivesse o “azar” de ficar grávida, poderia continuar “usando” seu escravo e isso era plenamente aceito pela família e pela sociedade. Caso se tratasse de um homem branco violando uma negra escravizada, a história teria um enredo diferente? Com certeza! Isso mostra também o machismo exacerbado na sociedade de então e que repercute nos dias de hoje. Um branco engravidar uma negra, na época era encarado como normal; já uma mulher branca ficar grávida de um negro era motivo de vergonha, quando não um crime punido com a segregação e a expulsão da família e da sociedade dominante. O outro caso, que sempre foi contado com risos, é ainda mais acintoso e humilhante: uma bisavó que foi “pega no laço” por meu parente e “domada”! Uma indígena afastada de seu povo, de seus costumes, de sua cultura pelo poder do homem branco. Obrigada a criar elos com uma família que ela não escolheu e que acabou aceitando como sua, num processo de escravidão permanente. Graças a essas vítimas do machismo, do racismo e da opressão, tenho uma mistura de sangue negro, indígena e branco-europeu. Sinto-me orgulhoso por essa miscigenação, mas morro de vergonha cada vez que lembro que ria quando me contavam estes casos e me arrependo também de todas as vezes em que os contei como se fosse uma comédia ligeira, como se esses antepassados não tivessem sofrido com esta humilhação, essa degradação da condição humana, para satisfazer aos que se julgavam com poder sobre suas vontades. Peço perdão a eles e a todos os que sofrem pelo racismo estrutural que ainda assola nossa sociedade hipócrita, que pensa ainda se tratar de mimimi quando as vítimas reclamam dessa violência.

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