quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

CRÔNICA DE UMA NOITE SEM ALMA

CRÔNICA DE UMA NOITE SEM ALMA

Aquela poderia ter sido uma noite qualquer. Muitas coisas poderiam ter acontecido e não ter passado de um susto, muitos fatos poderiam ser apenas uma anedota e algumas pessoas poderiam ter continuado evoluindo neste plano, aproveitando os ensinamentos da vida e evoluindo antes da passagem.
Mas não foi totalmente assim.
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Naquela noite eles faziam a mesma coisa que em outras tantas anteriores. Que se vai fazer em uma cidadezinha do litoral sul da Bahia, sem muitos recursos e cheia de turistas só durante o verão? Oras... Beber com os amigos, jogar conversa fora e celebrar a amizade de muitos anos.
Ritinha foi a primeira a dar sinal de cansaço e alegou sentir-se enjoada e cansada, além de uma dorzinha incipiente na cabeça que pedia para dormir.
_ Vamos, Rosa? Deixa esses meninos aí e vamos nós para casa.
_ Não posso dirigir, amiga. Já bebi umas cervejinhas a mais e não quero arriscar.
Contrariada – e Ritinha não gosta de se contrariar! _ não se deu por satisfeita. Voltou-se para o marido, que provavelmente tinha bebido mais do que Rosa, mas sabe como é... homem aguenta mais o álcool, certo? _ e o inquiriu:
_ Chico. Pegue aí o carro de Juca e leva eu mais Rosa em casa.
_ Seu pedido é uma ordem, minha flor _ deu uma piscadela para Juca, talvez torcendo para que o amigo se negasse _ Empresta aí, brother?
O amigo estendeu a chave.
_ Tá na mão. Mas também tenho que ir para casa.
_ Fica com meu quadriciclo. Logo os encontro em sua casa e destrocamos a condução.
Tudo acertado, saíram Chico, Ritinha e Rosa no carro de Juca e Juca no quadriciclo de Chico. Com a cerveja a mais na cabeça, ninguém se perguntou por que trocar os veículos, já que Juca poderia ir para casa, levando a mulher em seu carro, e Chico faria o mesmo com a sua de quadriciclo.
Mal fizeram a segunda curva na estrada de terra e se depararam com um grave acidente envolvendo duas motos que estavam sendo conduzidas por dois jovens que agonizavam no meio da poeira.
Pararam todos para ver o estado dos acidentados e, ao se darem conta da gravidade dos ferimentos, resolverem não tocar nos rapazes e buscar socorro.
As meninas desceram – Ritinha já sem dor de cabeça e Rosa sem sintomas de embriaguez. O marido de Rosa saltou para dentro do carro e foi com Chico até o posto de saúde, rezando para que, a essas horas da noite, tivesse médico e enfermeiro de plantão.
Encontraram o médico, que se dispôs a acompanha-los imediatamente.
_ Há um problema _ objetou o doutor _ O motorista da ambulância não veio trabalhar hoje.
_ Eu dirijo, doutor _ adiantou-se Juca.
Foram todos para os veículos e - outra surpresa! – nada da ambulância ligar.
O bravo médico não se deu por vencido. Buscou uma corda em seu carro e se prontificou a rebocar o veículo de salvamento.
_ Puxando a ambulância vai demorar muito, doutor _ alertou Chico.
_ Mas na ambulância há equipamentos de primeiros socorros _ explicou o senhor da medicina _ sem eles não poderei fazer nada se o estado dos pilotos é grave como vocês descreveram.
_ Então eu vou na frente _ se ofereceu Chico _ para avisar que o socorro já está chegando.
Todos de acordo e saiu Chico a toda velocidade, com o carro de Juca, em direção ao local do acidente.
Oras... A pressa, a escuridão, um buraco cavado sem prévio aviso – longe de pensar que seja por má condução ou álcool na cabeça! – provocaram um segundo acidente. Chico capotou o carro duas vezes e, por milagre, o veículo caiu de rodas para baixo e nosso herói não sofreu nenhum arranhão.
Atitude óbvia tomou ele: largou o carro capotado e tratou de terminar o percurso a pé ou arriscar uma carona.
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No posto policial do vilarejo o soldado Alfredo atendeu uma chamada de alguém aflito avisando que um acidente, envolvendo duas motos, tinha acontecido a cerca de sete quilômetros dali. Estava sozinho no posto e saiu sem pensar duas vezes, pois qualquer atraso nessas circunstâncias poderia custar a vida de alguém.
Conduziu por menos de três quilômetros e se deparou com um carro todo amassado, dando a impressão que tinha capotado.
Desceu da viatura e foi socorrer o motorista que, para sua surpresa, não estava ao volante. Ou já tinha sido socorrido ou estava caído por ali. Vasculhou as redondezas e nada de achar nem corpo nem ferido. Olhou para dentro do automóvel acidentado e encontrou uma bolsa feminina. Os documentos deveriam ser da dona do carro.
Iluminou o nome da dona e acionou o rádio da viatura para comunicar à central que uma “Rosa Silva” tinha capotado o veículo e que já deveria ter sido socorrida, pois os destroços estavam abandonados, inclusive com os documentos da moça. Não havia sangue no local, mas a acidentada deveria estar muito mal para ter deixado seus pertences, ao ser socorrida por pessoas estranhas.
Apagou a lanterna no exato momento em que o carro do médico local passava lentamente rebocando a ambulância com um desconhecido ao volante. O motorista da ambulância arregalou os olhos, mas desviou o olhar do policial e seguiu dirigindo o veículo com motor apagado. O policial entrou na viatura e decidiu seguir o estranho cortejo.
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Ritinha arregalou os olhos ao ver a mensagem que tinha recebido.
_ Amiga! _ Dirigiu-se a Rosa _ A Franciele, lá da central de polícia, disse que acabou de receber uma informação de que você sofreu um acidente e está em estado grave!
_ Que loucura é essa? Cadê minha bolsa?
_ Ficou no carro de Juca, que está sendo dirigido por...
_ Chico! _ Completou a amiga _ Liga aí pra minha mãe. Ela não pode ficar sabendo disso. Mês passado teve um ataque cardíaco.
A amiga ligou, mas o telefone estava ocupado. Tentou outras vezes, mas o resultado foi o mesmo.
Foi quando avistaram o carro do médico rebocando a ambulância e a viatura policial com as luzes girando logo atrás.
Para surpresa das duas, Juca desceu da ambulância e foi direto até elas.
_ Cadê o Chico?
_ A gente achava que ele estava com você _ respondeu Rosa.
_ Estava, mas, como tivemos que rebocar a ambulância e o motorista não estava no plantão, eu vim dirigindo e ele veio na frente avisar que o médico já chegava. Pior! Acho... Acho não, tenho certeza que ele capotou meu carro. Meu pau velho tava todo amassado do lado da estrada e este policial que aí vem tava lá vendo os documentos.
_ E porque você não parou, homem de Deus? _ Foi a vez de Ritinha inquirir o coitado _ O Chico pode estar ferido.
_ Tá louca, mulher? O policial podia pedir minha carteira de motorista e eu não tenho. Lá não tinha nem sinal do Chico.
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O médico, num exame rápido, percebeu que o estado dos dois acidentados era muito grave. Provavelmente tinham traumatismo craniano e teriam que ser imobilizados antes de serem colocados na ambulância. O problema é que no veículo só tinha uma maca para imobilização.
_ Preciso de alguma prancha reta e dois cintos! _ Gritou para o grupo de curiosos que tinha se reunido ao redor.
Não demorou para que um surfista, conhecido de todos, oferecesse sua prancha de pilotar ondas e logo dois cinturões apareceram e foram atados à cabeça e tórax do rapaz, que já respirava com dificuldade.
O policial fez uma clássica chupeta na bateria da ambulância e conseguiu fazer com que o motor acionasse. Ele mesmo se prontificou a conduzir até o hospital, deixando a viatura por ali e passando uma mensagem para a central, para que outro colega a viesse buscar.
Assim que saíram, o grupo de curiosos foi se dispersando, restando sobre a areia apenas as motos retorcidas, sangue e faróis quebrados.
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_ Vamos, Juca! _ Ordenou Ritinha.
_ Vamos pra onde, criatura?
_ Pra onde está seu carro, claro!
_ Meu carro! _ Juca pareceu se recordar só nesse instante do veículo acidentado _ O Chico me paga!
Montaram os três no quadriciclo e voltaram para o local do segundo acidente, onde já havia alguns curiosos e outros mais bem intencionados tentando arrancar as rodas.
_ Não mexe no que não é seu cabra da peste! _ Gritou Juca, fazendo com que um bando de ratos saísse correndo em direção à vila.
Vasculharam tudo e nada de Chico, nem da bolsa de Rosa.
_ Tô te falando, mulé! O policial levou sua bolsa. Amanhã a gente busca no posto policial.
_ Tá bom. Ritinha, liga pra minha mãe de novo.
A amiga obedeceu e desta vez a senhora atendeu. Passou o telefone pra outra e ela pôde tranquilizar a mãe.
_ E Chico? Onde foi parar este louco? _ Quis saber Rosa _ Ligue pra ele, amiga.
Para surpresa de todos, nada mais ligar, ouviram o som de um celular no meio do mato, a cerca de dez metros do carro acidentado. Todos correram até lá e viram Chico estirado no meio do capim, com algumas formigas passeando por sua boca.
_ Meu Deus! _ Gritou Rita _ Meu marido morreu!
Encostou o rosto no ombro de Rosa e danou a chorar. Nem viu quando Juca se aproximou do “corpo” e o examinou com cuidado.
_ Morreu nada, desgraçado! _ Sacudiu Chico e fez com que ele despertasse, chamando a atenção da ex-viúva chorosa.
_ Que... Que que tá acontecendo?
Rita correu a abraçar o marido.
_ Que susto você me deu, homem. Pensei que tinha enviuvado.
_ Posso saber o que aconteceu? _ Perguntou Juca, tentando disfarçar o nervosismo.
_ Eu capotei seu carro...
_ Isso todos nós já sabemos. E depois?
_ Saí correndo, pensando que chegaria até vocês antes do médico, pois ele estava rebocando a ambulância. Mas me cansei logo e resolvi voltar. Quando estava chegando vi o carro da polícia e me escondi o mato, pois não tenho carteira de motorista.
_ E aí?
_ Aí eu dormi.
_ Dormiu, seu descarado? _ Juca pareceu perder a paciência _ Meu carro capotado já estava sendo depenado quando chegamos aqui e você dormindo como um anjinho.
_ Vou te pagar tudo, Juca. Prometo.
_ Isso não tem nem dúvida. Agora vamos dar um jeito de arrastar o capotado pra casa.
_ Vamos tentar ligar? _ Sugeriu Rosa.
_ Só mulher mesmo pra achar que um carro capotado ainda vai dar na partida _ ironizou o marido da pobre.
Entretanto, Chico se sentou ao volante e girou a chave. O motor nem pipocou. Pegou de primeira.
Rosa olhou para o marido, exibindo aquele ar de superioridade que tanto o incomodava cada vez que tinha que dar o braço a torcer.
_ Sai daí, seu safado! _ Gritou para Chico _ Meu carro você não dirige mais.
_ Mas temos que comemorar _ Chico exibiu um sorriso que desmontou a todos.
_ Comemorar o que, marido? Dois amigos se acidentaram de moto, você capotou o carro do Juca e ainda quer comemorar?
_ Claro! Eu não me feri no capotamento, estamos todos saudáveis e continuamos amigos. Temos muito o que comemorar.
_ Só se for em casa _ acrescentou Juca _ Não quero ficar bebo e ter que dirigir depois.
Chico ainda teve presença de espírito para uma última piada:
_ Pois é. Vai que capota!
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O menino finalmente abriu os olhos e se deparou com um homem idoso, de barba branca, pele escura e lisa. Pareceu-lhe familiar.
_ Você pode chamar um médico?
_ Eu sou o médico, meu filho. Você já está sendo atendido.
_ Deve ser por isso que minha cabeça já não dói.
_ Não dói agora e não doerá mais.
_ Promete?
_ Prometo.
Foi então que se deu conta que estava deitado sobre uma prancha novinha, de profissional.
_ Uau! E esta prancha, coroa? Eu sempre quis uma quadriquilha. Esta é perfeita pra mim.
_ É sua, meu filho.
_ Pra onde vamos tem onda boa?
_ Só onda perfeita!
_ Legal! Nunca peguei um tubo. Lá eu consigo.
O homem apenas sorriu e estendeu a mão.
O menino, sem saber como chamá-lo, pensou que “Avô” era um bom nome.
Antes de seguir o homem, voltou-se para o outro acidentado sobre a maca da ambulância. O homem respondeu a pergunta que ele só imaginou fazer.
_ Ele será atendido em breve. Logo também estará surfando ondas perfeitas ao teu lado.
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O médico baixou as pupilas do primeiro moleque, o que estava atado à prancha de surf. Pensou em chorar, mas não tinha lágrima pronta. Entretanto sentiu um aperto danado no coração. Afinal, até os doutores da medicina se comovem quando alguém tão jovem perde a vida de forma torpe.
_ Esta parece uma noite sem alma! _ Concluiu quando o segundo jovem acidentado parou de respirar.
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Nota 1: Apesar das licenças literárias e da imaginação que preenche lacunas que não conheço nessa história, todo o enredo da crônica se desenrolou na noite de 6 para 7 de janeiro de 2017.
Nota 2: Os nomes dos personagens foram alterados ou ocultos, para preservar famílias e dignidades, nesta que, se fosse uma história de ficção, poderia até ser divertida, mas que retrata uma dura realidade.

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